terça-feira, 30 de julho de 2024

Inverno

Era o avô
quem tinha o gesto. Quem desenhava
o gesto. Os outros tinham as patas (atadas
imóveis
no chão) mas o avô era o gesto (frio
áspero
profundo) que ia pela vida
do animal. A mão vacilava menos do que
a agulha de uma bússola
se acaso falhava o alvo (que conhecia
de cor) o
animal agastava-se num penoso sofrimento
que percorria distâncias. Depois
o sangue jorrava
(colorindo um alguidar) enquanto o bicho partia
um pouco mais que
minutos numa
agonia quente. Eu andava por ali (alheio à
morte e ao
mundo) à espera que fosse servido
(salteado de cominhos) o
sangue do animal. Que sabia eu então de
dar ou tirar
a vida? Que entendia eu
da dor?

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Agradecimentos

A Apolo
por ter revisto os poemas que Dionísio
esboçou. Aos pêssegos e às ameixas
por terem chegado
mais cedo. Aos gatos de Hemingway (que tinham
seis dedos por pata). Á brava mulher de Lot
por ter voltado a
cabeça. A esses que por aí andam a ver
para que lado vai dar. Aos trombos
nas veias
por recusarem ser êmbolos. Às ameijôas do Algarve
em especial às 
que abriram. À agulha da catedral
por rasgar as nuvens
de Dezembro. Às cadeiras dos Cafés que
dorme de pernas para o ar. Às chavenas do
serviço de chá
(lembrando as que partiram). Ao cheiro das estações 
de comboio a
cada tarde que passa. Aos ossos e
aos músculos do corpo. Ao
mais pequeno 
movimento.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Em legítima defesa

Sei hoje que ninguém antes de ti
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
à nossa irrequieta condição de vivos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
São uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas nos gestos nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um perigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
como coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesse morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
Só tu morreste tanto que não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontrava e te possa encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais

sexta-feira, 14 de junho de 2024

FAQS

Acontece-te
acordares antes do teu braço acordar?
Alguma vez te ligaram para vender silêncio?
Para onde vão as palavras
assim que soltas no ar? Retiras a crosta à ferida
para manter a
dor acesa? Por quanto mais tempo haverá 
ignorantes
no poder? O amor é vermelho ou
também existe em preto? A rotina que satura é
a mesma que protege? Comprar tempo
num parquímetro
permite viver mais tempo? Se o gato te arranha
aproveitas para ler
glicemia? Ao terminares a viagem há
uma placa com o teu nome? Se Deus fosse uma mukher
teria descansado
ao domingo? Pensa bem: se Deus fosse
uma mulher teria descansado
ao domingo?

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Do inexplicável

O meu projecto de morrer é o meu ofício
Esperar é um modo de chegares
Um modo de te amar dentro do tempo

domingo, 19 de maio de 2024

Requiem por um bicho

Está tudo muito certo mas a gata

que outro mundo trará a gata que morreu?

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Um dia não muito longe não muito perto

Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?

Portugal Sacro-profano (Mercados dos Santos, em Nisa)

O tempo é outro tempo nas terras pequenas 

e quem de si mesmo afinal foge encontra aqui o coração em festa 

As árvores são novas e no adro em rodas contra a cal e contra o frio há gente 

o sol preenche tudo e é quase tão redondo como Deus 

Cada coisa tem nome e reconheço o aroma das estevas 

na missa o claro coro das mulheres leva os campos à igreja 

e há crianças bibes saco escola sino guizos gado 

o frio fecha, o sol semeia, a luz alastra e o silêncio é fundamental 

— cartaz quase municipal que me recruta e traz 

do fundo de umas páginas de pó ao cúmulo das folhas amarelas 

reais e rituais, folhas finas das mãos de Columbano 

como tudo o que gira envolto no rodar do ano 

E a terra a pedra o ar opõem sempre ao céu a mesma superfície 

sobre os corpos extensos sob a erva, imersos no cansaço 

E eu dia após dia dado ao esforço de alongar 

a morte prometida a toda a minha cara ou dissipar 

a queda num lugar desde o mais alto de mim próprio 

Ah! não ter eu uma só solução para tudo, tantos gestos transbordantes 

em vez de dividir os dedos pelas coisas múltiplas diversas 

Uma só cara uma só rua em vez de tantos traços e travessas 

uma mulher, alguém capaz de partilhar 

o peso que nos ombros cada dia nos puser 

Mas um homem aqui renasce e repudia a morte 

que lhe amarrava os braços ao quadrante do relógio

Amigos para quê? E longe de famílias e tensões, 

alheio a elementos de curriculum, esquecido 

até de prazos horas carreira promissora ou simples biografia 

o homem vai buscar às árvores de pé pedidas pelo sol 

a única possível genealogia 

Pátria paraíso pétala — que nome 

existe para isto que nem mesmo é alegria 

nem nascer outra vez apenas, nem matar aquela fome 

que o mais certinho dia sem remédio adia?! 

Aqui há coisas homens pedras oliveiras animais 

reunidos na vida, recortados nítidos diversos 

E apesar da indispensável confusão dos versos 

aqui não é possível nunca mais 

trocar coisa por coisa. Aqui o dia cai 

sobre a noite que sobe. Uma voz canta, 

alguém além mais longe chora 

O adro a árvore a casa onde se está, onde se entra e mora 

Aqui o homem é… ou era mesmo agora

sábado, 13 de abril de 2024

The Doors of Perception

 In a world where education is predominantly verbal, highly educated people find it all but impossible to pay serious attention to anything but words and notions. There is always money for, there are always doctorates in, the learned foolery of research into what, for scholars, is the all-important problem: Who influenced whom to say what when? Even in this age of technology the verbal humanities are honored. The non-verbal humanities, the arts of being directly aware of the given facts of our existence, ale almost completely ignored. A catalogue, a bibliography, a definitive edition of a third-rate versier's ipsissima verba, a stupendous index to end all indexes - any genuinely Alexandrian project is sure of approval and financial support: But when it comes to finding out how you and I, our children and grandchildren, may become more perceptive, more intensely aware of inward and outward reality, more open to the Spirit, less apt, by psychological malpractices, to make ourselves physically ill, and more capable of controlling our own autonomic nervous system - when it comes to any form of non-verbal education more fundamental (and more likely to be of some practical use) than Swedish drill, no really respectable person in any really respectable university or church will do anything about it. Verbalists are suspicious of the non-verbal; rationalists fear the given, non-rational fact; intellectuals feel that "what we perceive by the eye (or in any other way) is foreign to us as such and need not impress us deeply." Besides, this matter of education in the non-verbal humanities will not fit into any of the established pigeonholes. It is not religion, not neurology, not gymnastics, not morality or civics, not even experimental psychology. This being so the subject is, for academic and ecclesiastical purposes, non-existent and may safely be ignored altogether or left, with a Patronizing smile, to those whom the Pharisees of verbal orthodoxy call cranks, quacks, charlatans and unqualified amateurs. "I have always found," Blake wrote rather bitterly, "that Angels have the vanity to speak of themselves as the only wise. This they do with a confident insolence sprouting from systematic reasoning." Systematic reasoning is something we could not, as a species or as individuals, possibly do without. But neither, if we are to remain sane, can we possibly do without direct perception, the more unsystematic the better, of the inner and outer worlds into which we have been born

sexta-feira, 12 de abril de 2024

VAT 69

Era depois da morte herberto helder
Ia fazer três anos que morrêramos
três anos dia a dia descontados no relógio
da torre que de sombra nos cobriu a infância:
rodas no adro - gira a borboleta que se atira ao ar
o jogo do berlinde o trinta e um pedradas
nas cabeças nos ninhos nas vidraças
Foi quando verdadeiramente começou
a conspiração dos líquenes cabelos e avencas
na mina onde molhámos nossos jovens pés
e tirámos retratos pra morrer mais uma vez
Os nossos filhos - nós outra vez crianças -
comiam e gostavam das laranjas essas mesmas laranjas
que mordemos em tempos ao chegar nas férias de natal
no quintal que as máximas mãos deixaram já depois abandonado
Era a seguir à morte meu poeta
era na meninice havia festa e na sala da entrada
pensávamos na morte - nunca mais - pela primeira vez
Trincávamos cheirávamos maçãs no muro sobre a praia
roubávamos o balde ou íamos atrás do homem dos robertos
Era nas férias havia o mar e íamos à missa
ouvíamos a campainha e o padre voltava-se pra nós
-orate frates - ou íamos ao cemitério apesar do catitinha
Era depois da morte sobre a plana infância
o primeiro natal o cheiro do jornal
lido na adega ou na casa do forno
sentados pensativos sobre a terra húmida
Era na infância o sol caía enquanto água corria
entre os pés de feijão e os buracos de toupeiras
calcados prontamente pelas botas
soprava o vento e vinha a moinha da eira
o cão comia o bolo e morria debaixo da figueira
e teria sepultura com enterro e cruz e muitas flores
Havia casamentos o meu pai falava
e os noivos deitavam-nos confeitos das carroças
E os registos mistério tempo da prenhez
Era talvez no outono havia asma
havia a festa da azeitona havia os fritos
ao domingo havia os bêbados estendidos pelas ruas
havia tanta coisa no outono havia o cristovam pavia
Era a primavera o rio rápido subia
os barcos navegavam entre a vinha
e alastrava a sombra e a tarde adensava-se
num espesso e branco nevoeiro de algodão
noite dos candeeiros sombras nas paredes
e minha mãe pegava na espingarda ia à janela
e ouvia-se o chumbo no telhado lá ao longe
O leovigildo o marcolino o sítio do miguel
a sesta a monda das mulheres
a queda do bizarro exposto na igreja
isso e o almoço a saber mal
quando vinham da escola pra saber significados
Eram as despedidas de coelhos e galinhas antes das viagens
Eram as festas era o roubo dos melões
era a menstruação oculta da criada
Era talvez em tempos de tormenta
havia ferros entre a palha por baixo da galinha
que chocava os ovos dentro de um velho cesto
eram as nossas casa em adobe
e era o carnaval os bailes os cortejos
Íamos para a praia e eu lia camilo
ouvia o mar bater sem conseguir compreender
como podia estar ali se tinha estado noutro sítio
Era o tempo dos primeiros amores
eu via o pavão adoecia e só muito mais tarde lia
o trecho que me competia entre as amadas raparigas
A casa não ficava muito longe dos montes
não havia a cidade nem os outros
punham ainda em causa o meu reino de deus
senhor de tudo o que depois não tive
Era depois da morte ou era antes da morte?
Mas haveria a morte verdadeiramente?
Lia o paulo e virgínia chorava e perguntava
se tudo aquilo tinha acontecido
Era o meu pai era esse sonhador incorrigível
sem nunca mais saber que havia de fazer dos dias
Eram as folhas novas eram os perdigotos
saídos não há muito ainda da casca
Era era tanta coisa
Seria realmente após a morte herberto helder

The Doors of Perception

 An hour later, with ten more miles and the visit to the World's Biggest Drug Store safely behind us, we were back at home, and I had returned to that reassuring but profoundly unsatisfactory state known as "being in one's right mind."

quarta-feira, 10 de abril de 2024

The Doors of Perception

 Let me add, before we leave this subject, that there is no form of contemplation, even the most quietistic, which is without its ethical values. Half at least of all morality is negative and consists in keeping out of mischief. The Lord's Prayer is less than fifty words long, and six of those words are devoted to asking God not to lead us into temptation. The one-sided contemplative leaves undone many things that he ought to do; but to make up for it, he refrains from doing a host of things he ought not to do. The sum of evil, Pascal remarked, would be much diminished if men could only learn to sit quietly in their rooms. The contemplative whose perception has been cleansed does not have to stay in his room. He can go about his business, so completely satisfied to see and be a part of the divine Order of Things that he will never even be tempted to indulge in what Traherne called "the dirty Devices of the world." When we feel ourselves to be sole heirs of the universe, when "the sea flows in our veins ... and the stars are our jewels," when all things are perceived as infinite and holy, what motive can we have for covetousness or self-assertion, for the pursuit of power or the drearier forms of pleasure? Contemplatives are not likely to become gamblers, or procurers, or drunkards; they do not as a rule preach intolerance, or make war; do not find it necessary to rob, swindle or grind the faces of the poor. And to these enormous negative virtues we may add another which, though hard to define, is both positive and important. The arhat and the quietist may not practice contemplation in its fullness; but if they practice it at all, they may bring back enlightening reports of another, a transcendent country of the mind; and if they practice it in the height, they will become conduits through which some beneficent influence can how out of that other country into a world of darkened selves, chronically dying for lack of it.

terça-feira, 9 de abril de 2024

The Doors of Perception

We live together, we act on, and react to, one another; but always and in all circumstances we are by ourselves. The martyrs go hand in hand into the arena; they are crucified alone. Embraced, the lovers desperately try to fuse their insulated ecstasies into a single self-transcendence; in vain. By its very nature every embodied spirit is doomed to suffer and enjoy in solitude. Sensations, feelings, insights, fancies—all these are private and, except through symbols and at second hand, incommunicable. We can pool information about experiences, but never the experiences themselves. From family to nation, every human group is a society of island universes

terça-feira, 2 de abril de 2024

Separação de Abrãao e Lot

Se fores pela direita

Olharei em redor

Se fores pela esquerda e descansares

Olharei em redor


O meu olhar há de acompanhar-te

Como a poeira à volta dos teus pés


Se desceres à planície

E fizeres a tenda com o véu da mulher

Não desviarei o olhar

Não dividirei a túnica


Se fores pelo centro de ti mesmo

Tactearei

Abrirei a mão e estarás próximo

Basta respirares

E olharei em redor

sábado, 30 de março de 2024

Percurso

3

Cumpro a vocação de não poder.

sexta-feira, 29 de março de 2024

Epígrafe para a nossa solidão

Cruzámos nossos olhos em alguma esquina

demos civicamente os bons dias:

chamar-nos-ão vais ver contemporâneos.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Anteaurora

Pai

Tenho medo de morrer depois da morte

Tenho medo de morrer antes da vida

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Livro de sonetos

Não comerei da alface a verde pétala

Nem da cenoura as hóstias desbotadas

Deixarei as pastagens às manadas

E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Poemas canhotos

 o António Ramos Rosa estava deitado na cama contra a parede 

e deu meia volta sobre si mesmo 

e ficou de cara voltada contra a parede 

e fechou os olhos 

e fechou a boca

e ficou todo fechado 

e então morreu todo 

fundo e completo de uma só vez 

e apenas ele no tempo e no espaço 

e só agora passado ano e meio eu compreendo 

como era preciso ser assim tão íntimo para sempre 

tão compacto 

mais que o mundo inteiro

 – e ele sou eu

domingo, 26 de novembro de 2023

Visão de Herberto Helder da morte de António Ramos Rosa

António ramos rosa cuja morte0

herberto viu sem a ela assistir 

estava, segundo o testemunho obtido 

através da visão vinda num frio 

relâmpago, deitado numa cama 

a dele, contra a parede 


Há que dar meia volta com a cara 

contra a parede para entrar na morte 

totalmente 

isso aprendeu herberto e compreendeu 

ao ver-se nessa morte em que não estava 

que se via num espelho

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Na morte de um contabilista

 As contas estão feitas e decerto fechadas

(não sei se são sinónimos os termos com que tento

descrever em que ponto

final foram deixadas)


falávamos há dias das actas que faltavam

e em falta ficaram


não as irá fazer e não sei se isso importa

só se fará a acta da entrada no fogo

ou na terra,

ar e água talvez não façam falta.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Golpe

Por medo da insónia adio o sono

nas noites em que com um golpe frio

a memória levanta a onda morta

do irrecuperável: o que adio?

Estou deitado num tempo muito extenso
entre a luz e o escuro, estou perdido
entre o imaginado e a verdade
de um mundo sem imagens: o que adio

não é o sono de que temo a falta
nem o sonho feroz nele contido
é a história do corpo percutindo
na fundura impiedosa do vazio

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

O forno e a face

Quando o dia 

da noite se separa sem sabermos 

qual deles nos prepara 


seja para o passado (mas não há

preparação, sequer reparação 

do que está selado) 


seja para cumprir o contrato da nossa 

tão incerta saída ( de que vida?) 

os astros vão 


esquecer-nos e deixarão por fim 

que a luz abandonando a pele há tanto ao cósmico 

desígnio subjugada, 


não seja mais a voz outrora já 

escutada 

dentro do alto forno que nos forjou a cara

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Capitalismo e pulsão de morte

 Aquilo a que hoje chamamos crescimento é, na realidade, uma proliferação carcinomatosa, desprovida de sentido. Actualmente assistimos a uma euforia de produção e de crescimento que faz lembrar um delírio de morte. Simula uma vitalidade que oculta a aproximação de uma catástrofe mortal. A produção assemelha-se cada vez mais a uma destruição.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Capitalismo e pulsão de morte

 Nas sociedades capitalistas, os mortos e os moribundos são cada vez menos visíveis. Mas não se pode simplesmente fazer desaparecer a morte. Se, por exemplo, a fábrica já não existe, o trabalho está por toda a parte. Se as instituições psiquiátricas desaparecem, é porque a loucura se tornou normalidade. Passa-se exactamente o mesmo com a morte. Se os mortos já não são visiveís, o rigor mortis cobre a vida. A cida petrifica-se, convertendo-se em sobrevivência. (...)  

A separação entre a vida e a morte, que constitui a economia capitalista, produz a vida morta-viva, a morte em vida. O capitalismo gera uma pulsão de morte paradoxal, porque priva a vida de vida. É mortal a sua busca de uma vida sem morte. Os zombies do desempenho, do fitness ou do botox são fenómenos da vida morta-viva. Os mortos-vivos não têm vitalidade. Só é verdadeiramente viva a vida que incorpora a morte. A histeria da saúde é a manifestação biopolítica do próprio capital.