terça-feira, 30 de julho de 2024
Inverno
segunda-feira, 29 de julho de 2024
Agradecimentos
segunda-feira, 22 de julho de 2024
Em legítima defesa
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
São uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas nos gestos nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um perigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
como coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesse morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
Só tu morreste tanto que não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontrava e te possa encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais
sexta-feira, 14 de junho de 2024
FAQS
segunda-feira, 10 de junho de 2024
Do inexplicável
domingo, 19 de maio de 2024
segunda-feira, 15 de abril de 2024
Um dia não muito longe não muito perto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?
Portugal Sacro-profano (Mercados dos Santos, em Nisa)
O tempo é outro tempo nas terras pequenas
e quem de si mesmo afinal foge encontra aqui o coração em festa
As árvores são novas e no adro em rodas contra a cal e contra o frio há gente
o sol preenche tudo e é quase tão redondo como Deus
Cada coisa tem nome e reconheço o aroma das estevas
na missa o claro coro das mulheres leva os campos à igreja
e há crianças bibes saco escola sino guizos gado
o frio fecha, o sol semeia, a luz alastra e o silêncio é fundamental
— cartaz quase municipal que me recruta e traz
do fundo de umas páginas de pó ao cúmulo das folhas amarelas
reais e rituais, folhas finas das mãos de Columbano
como tudo o que gira envolto no rodar do ano
E a terra a pedra o ar opõem sempre ao céu a mesma superfície
sobre os corpos extensos sob a erva, imersos no cansaço
E eu dia após dia dado ao esforço de alongar
a morte prometida a toda a minha cara ou dissipar
a queda num lugar desde o mais alto de mim próprio
Ah! não ter eu uma só solução para tudo, tantos gestos transbordantes
em vez de dividir os dedos pelas coisas múltiplas diversas
Uma só cara uma só rua em vez de tantos traços e travessas
uma mulher, alguém capaz de partilhar
o peso que nos ombros cada dia nos puser
Mas um homem aqui renasce e repudia a morte
que lhe amarrava os braços ao quadrante do relógio
Amigos para quê? E longe de famílias e tensões,
alheio a elementos de curriculum, esquecido
até de prazos horas carreira promissora ou simples biografia
o homem vai buscar às árvores de pé pedidas pelo sol
a única possível genealogia
Pátria paraíso pétala — que nome
existe para isto que nem mesmo é alegria
nem nascer outra vez apenas, nem matar aquela fome
que o mais certinho dia sem remédio adia?!
Aqui há coisas homens pedras oliveiras animais
reunidos na vida, recortados nítidos diversos
E apesar da indispensável confusão dos versos
aqui não é possível nunca mais
trocar coisa por coisa. Aqui o dia cai
sobre a noite que sobe. Uma voz canta,
alguém além mais longe chora
O adro a árvore a casa onde se está, onde se entra e mora
Aqui o homem é… ou era mesmo agora
sábado, 13 de abril de 2024
The Doors of Perception
In a world where education is predominantly verbal, highly educated people find it all but impossible to pay serious attention to anything but words and notions. There is always money for, there are always doctorates in, the learned foolery of research into what, for scholars, is the all-important problem: Who influenced whom to say what when? Even in this age of technology the verbal humanities are honored. The non-verbal humanities, the arts of being directly aware of the given facts of our existence, ale almost completely ignored. A catalogue, a bibliography, a definitive edition of a third-rate versier's ipsissima verba, a stupendous index to end all indexes - any genuinely Alexandrian project is sure of approval and financial support: But when it comes to finding out how you and I, our children and grandchildren, may become more perceptive, more intensely aware of inward and outward reality, more open to the Spirit, less apt, by psychological malpractices, to make ourselves physically ill, and more capable of controlling our own autonomic nervous system - when it comes to any form of non-verbal education more fundamental (and more likely to be of some practical use) than Swedish drill, no really respectable person in any really respectable university or church will do anything about it. Verbalists are suspicious of the non-verbal; rationalists fear the given, non-rational fact; intellectuals feel that "what we perceive by the eye (or in any other way) is foreign to us as such and need not impress us deeply." Besides, this matter of education in the non-verbal humanities will not fit into any of the established pigeonholes. It is not religion, not neurology, not gymnastics, not morality or civics, not even experimental psychology. This being so the subject is, for academic and ecclesiastical purposes, non-existent and may safely be ignored altogether or left, with a Patronizing smile, to those whom the Pharisees of verbal orthodoxy call cranks, quacks, charlatans and unqualified amateurs. "I have always found," Blake wrote rather bitterly, "that Angels have the vanity to speak of themselves as the only wise. This they do with a confident insolence sprouting from systematic reasoning." Systematic reasoning is something we could not, as a species or as individuals, possibly do without. But neither, if we are to remain sane, can we possibly do without direct perception, the more unsystematic the better, of the inner and outer worlds into which we have been born
sexta-feira, 12 de abril de 2024
VAT 69
Ia fazer três anos que morrêramos
três anos dia a dia descontados no relógio
da torre que de sombra nos cobriu a infância:
rodas no adro - gira a borboleta que se atira ao ar
o jogo do berlinde o trinta e um pedradas
nas cabeças nos ninhos nas vidraças
Foi quando verdadeiramente começou
a conspiração dos líquenes cabelos e avencas
e tirámos retratos pra morrer mais uma vez
Os nossos filhos - nós outra vez crianças -
comiam e gostavam das laranjas essas mesmas laranjas
que mordemos em tempos ao chegar nas férias de natal
no quintal que as máximas mãos deixaram já depois abandonado
Era a seguir à morte meu poeta
era na meninice havia festa e na sala da entrada
pensávamos na morte - nunca mais - pela primeira vez
Trincávamos cheirávamos maçãs no muro sobre a praia
roubávamos o balde ou íamos atrás do homem dos robertos
Era nas férias havia o mar e íamos à missa
ouvíamos a campainha e o padre voltava-se pra nós
-orate frates - ou íamos ao cemitério apesar do catitinha
Era depois da morte sobre a plana infância
o primeiro natal o cheiro do jornal
lido na adega ou na casa do forno
sentados pensativos sobre a terra húmida
Era na infância o sol caía enquanto água corria
entre os pés de feijão e os buracos de toupeiras
calcados prontamente pelas botas
soprava o vento e vinha a moinha da eira
o cão comia o bolo e morria debaixo da figueira
e teria sepultura com enterro e cruz e muitas flores
Havia casamentos o meu pai falava
e os noivos deitavam-nos confeitos das carroças
E os registos mistério tempo da prenhez
Era talvez no outono havia asma
havia a festa da azeitona havia os fritos
ao domingo havia os bêbados estendidos pelas ruas
havia tanta coisa no outono havia o cristovam pavia
Era a primavera o rio rápido subia
os barcos navegavam entre a vinha
e alastrava a sombra e a tarde adensava-se
num espesso e branco nevoeiro de algodão
noite dos candeeiros sombras nas paredes
e minha mãe pegava na espingarda ia à janela
e ouvia-se o chumbo no telhado lá ao longe
O leovigildo o marcolino o sítio do miguel
a sesta a monda das mulheres
a queda do bizarro exposto na igreja
isso e o almoço a saber mal
quando vinham da escola pra saber significados
Eram as despedidas de coelhos e galinhas antes das viagens
Eram as festas era o roubo dos melões
era a menstruação oculta da criada
Era talvez em tempos de tormenta
havia ferros entre a palha por baixo da galinha
que chocava os ovos dentro de um velho cesto
eram as nossas casa em adobe
e era o carnaval os bailes os cortejos
Íamos para a praia e eu lia camilo
ouvia o mar bater sem conseguir compreender
como podia estar ali se tinha estado noutro sítio
Era o tempo dos primeiros amores
eu via o pavão adoecia e só muito mais tarde lia
o trecho que me competia entre as amadas raparigas
A casa não ficava muito longe dos montes
não havia a cidade nem os outros
punham ainda em causa o meu reino de deus
senhor de tudo o que depois não tive
Era depois da morte ou era antes da morte?
Mas haveria a morte verdadeiramente?
Lia o paulo e virgínia chorava e perguntava
se tudo aquilo tinha acontecido
Era o meu pai era esse sonhador incorrigível
sem nunca mais saber que havia de fazer dos dias
Eram as folhas novas eram os perdigotos
saídos não há muito ainda da casca
Era era tanta coisa
Seria realmente após a morte herberto helder
The Doors of Perception
An hour later, with ten more miles and the visit to the World's Biggest Drug Store safely behind us, we were back at home, and I had returned to that reassuring but profoundly unsatisfactory state known as "being in one's right mind."
quarta-feira, 10 de abril de 2024
The Doors of Perception
Let me add, before we leave this subject, that there is no form of contemplation, even the most quietistic, which is without its ethical values. Half at least of all morality is negative and consists in keeping out of mischief. The Lord's Prayer is less than fifty words long, and six of those words are devoted to asking God not to lead us into temptation. The one-sided contemplative leaves undone many things that he ought to do; but to make up for it, he refrains from doing a host of things he ought not to do. The sum of evil, Pascal remarked, would be much diminished if men could only learn to sit quietly in their rooms. The contemplative whose perception has been cleansed does not have to stay in his room. He can go about his business, so completely satisfied to see and be a part of the divine Order of Things that he will never even be tempted to indulge in what Traherne called "the dirty Devices of the world." When we feel ourselves to be sole heirs of the universe, when "the sea flows in our veins ... and the stars are our jewels," when all things are perceived as infinite and holy, what motive can we have for covetousness or self-assertion, for the pursuit of power or the drearier forms of pleasure? Contemplatives are not likely to become gamblers, or procurers, or drunkards; they do not as a rule preach intolerance, or make war; do not find it necessary to rob, swindle or grind the faces of the poor. And to these enormous negative virtues we may add another which, though hard to define, is both positive and important. The arhat and the quietist may not practice contemplation in its fullness; but if they practice it at all, they may bring back enlightening reports of another, a transcendent country of the mind; and if they practice it in the height, they will become conduits through which some beneficent influence can how out of that other country into a world of darkened selves, chronically dying for lack of it.
terça-feira, 9 de abril de 2024
The Doors of Perception
We live together, we act on, and react to, one another; but always and in all circumstances we are by ourselves. The martyrs go hand in hand into the arena; they are crucified alone. Embraced, the lovers desperately try to fuse their insulated ecstasies into a single self-transcendence; in vain. By its very nature every embodied spirit is doomed to suffer and enjoy in solitude. Sensations, feelings, insights, fancies—all these are private and, except through symbols and at second hand, incommunicable. We can pool information about experiences, but never the experiences themselves. From family to nation, every human group is a society of island universes
terça-feira, 2 de abril de 2024
Separação de Abrãao e Lot
Se fores pela direita
Olharei em redor
Se fores pela esquerda e descansares
Olharei em redor
O meu olhar há de acompanhar-te
Como a poeira à volta dos teus pés
Se desceres à planície
E fizeres a tenda com o véu da mulher
Não desviarei o olhar
Não dividirei a túnica
Se fores pelo centro de ti mesmo
Tactearei
Abrirei a mão e estarás próximo
Basta respirares
E olharei em redor
sábado, 30 de março de 2024
sexta-feira, 29 de março de 2024
Epígrafe para a nossa solidão
Cruzámos nossos olhos em alguma esquina
demos civicamente os bons dias:
chamar-nos-ão vais ver contemporâneos.
quinta-feira, 28 de março de 2024
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
Livro de sonetos
Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
segunda-feira, 27 de novembro de 2023
Poemas canhotos
o António Ramos Rosa estava deitado na cama contra a parede
e deu meia volta sobre si mesmo
e ficou de cara voltada contra a parede
e fechou os olhos
e fechou a boca
e ficou todo fechado
e então morreu todo
fundo e completo de uma só vez
e apenas ele no tempo e no espaço
e só agora passado ano e meio eu compreendo
como era preciso ser assim tão íntimo para sempre
tão compacto
mais que o mundo inteiro
– e ele sou eu
domingo, 26 de novembro de 2023
Visão de Herberto Helder da morte de António Ramos Rosa
António ramos rosa cuja morte0
herberto viu sem a ela assistir
estava, segundo o testemunho obtido
através da visão vinda num frio
relâmpago, deitado numa cama
a dele, contra a parede
Há que dar meia volta com a cara
contra a parede para entrar na morte
totalmente
isso aprendeu herberto e compreendeu
ao ver-se nessa morte em que não estava
que se via num espelho
terça-feira, 21 de novembro de 2023
Na morte de um contabilista
As contas estão feitas e decerto fechadas
(não sei se são sinónimos os termos com que tento
descrever em que ponto
final foram deixadas)
falávamos há dias das actas que faltavam
e em falta ficaram
não as irá fazer e não sei se isso importa
só se fará a acta da entrada no fogo
ou na terra,
ar e água talvez não façam falta.
sexta-feira, 10 de novembro de 2023
Golpe
Por medo da insónia adio o sono
nas noites em que com um golpe frio
a memória levanta a onda morta
do irrecuperável: o que adio?
Estou deitado num tempo muito extenso
entre a luz e o escuro, estou perdido
entre o imaginado e a verdade
de um mundo sem imagens: o que adio
não é o sono de que temo a falta
nem o sonho feroz nele contido
é a história do corpo percutindo
na fundura impiedosa do vazio
segunda-feira, 6 de novembro de 2023
O forno e a face
Quando o dia
da noite se separa sem sabermos
qual deles nos prepara
seja para o passado (mas não há
preparação, sequer reparação
do que está selado)
seja para cumprir o contrato da nossa
tão incerta saída ( de que vida?)
os astros vão
esquecer-nos e deixarão por fim
que a luz abandonando a pele há tanto ao cósmico
desígnio subjugada,
não seja mais a voz outrora já
escutada
dentro do alto forno que nos forjou a cara
quarta-feira, 1 de novembro de 2023
Capitalismo e pulsão de morte
Aquilo a que hoje chamamos crescimento é, na realidade, uma proliferação carcinomatosa, desprovida de sentido. Actualmente assistimos a uma euforia de produção e de crescimento que faz lembrar um delírio de morte. Simula uma vitalidade que oculta a aproximação de uma catástrofe mortal. A produção assemelha-se cada vez mais a uma destruição.
quarta-feira, 25 de outubro de 2023
Capitalismo e pulsão de morte
Nas sociedades capitalistas, os mortos e os moribundos são cada vez menos visíveis. Mas não se pode simplesmente fazer desaparecer a morte. Se, por exemplo, a fábrica já não existe, o trabalho está por toda a parte. Se as instituições psiquiátricas desaparecem, é porque a loucura se tornou normalidade. Passa-se exactamente o mesmo com a morte. Se os mortos já não são visiveís, o rigor mortis cobre a vida. A cida petrifica-se, convertendo-se em sobrevivência. (...)
A separação entre a vida e a morte, que constitui a economia capitalista, produz a vida morta-viva, a morte em vida. O capitalismo gera uma pulsão de morte paradoxal, porque priva a vida de vida. É mortal a sua busca de uma vida sem morte. Os zombies do desempenho, do fitness ou do botox são fenómenos da vida morta-viva. Os mortos-vivos não têm vitalidade. Só é verdadeiramente viva a vida que incorpora a morte. A histeria da saúde é a manifestação biopolítica do próprio capital.