quinta-feira, 24 de março de 2022

Walden ou a vida nos bosques

 A absoluta simplicidade e o despojamento da vida que o homem levava nos tempos primitivos tinham pelo menos a vantagem de deixá-lo ser hóspede da natureza. Quando se sentia retemperado pelo alimento ou pelo sono, tinha a estrada novamente diante de si. Morava neste mundo como se fosse numa tenda e estava sempre palmilhando vales, cruzando planícies, galgando cumes de montanhas. Mas vejam só! Os homens se transformaram nos instrumentos de seus instrumentos. Aquele que na maior liberdade apanhava os frutos nas árvores quando sentia fome, tornou-se agricultor; o que se deixava ficar debaixo de uma árvore por abrigo, virou caseiro. Não mais acampamos por uma noite, mas nos instalamos na terra esquecidos do céu. Adotamos o Cristianismo como se se tratasse simplesmente de um método de agricultura aperfeiçoado. Construímos para este mundo uma mansão familiar e para depois da morte um jazigo de família. As melhores obras de arte do homem exprimem a luta para libertar-se desta condição, porém o que resulta de nossa arte é tão só tornar confortável este estado inferior e nos fazer esquecer do outro mais elevado. Nesta cidade não há realmente lugar para uma obra de arte, se tivéssemos que herdar alguma para permanecer, porque nossas vidas, casas e ruas não lhe oferecem um pedestal condigno. Não há um prego em que se pendure um quadro, nem uma estante onde se coloque o busto de um herói ou de um santo. Quando reflito sobre a maneira pela qual nossas casas são construídas e pagas, ou deixam de ser pagas, e sua economia interna administrada e mantida, admiro-me que, enquanto uma visita se entretém vendo bugigangas sobre a lareira, o assoalho não ceda sob seu peso, deixando-a cair em pleno porão de encontro afinal com alicerces grosseiros mas sólidos e honestos. Não posso deixar de perceber que a vida considerada refinada e rica não passa de algo a que se ascendeu por um salto, e não consigo me deixar envolver no gozo das belas artes que a enfeitam, a atenção totalmente atraída para o salto, porque não me sai da mente que o maior pulo genuíno, isto é, graças exclusivamente a músculos humanos, de que se tem notícia até hoje, é o de certos árabes nômades que segundo consta atinge cerca de oito metros. Não resta dúvida de que, sem um apoio artificial, além dessa distância o homem dá com os costados no chão. A primeira pergunta que sou tentado a colocar ao proprietário dessa grande impropriedade é: "Quem te sustenta? Estás no rol dos noventa e sete que fracassaram ou dos três que tiveram êxito?" Responde-me primeiro a essas questões e então talvez eu possa dar uma olhada nas tuas quinquilharias e achá-las ornamentais. O carro adiante dos bois não é bonito nem útil. Antes de podermos adornar nossas casas com belos objetos as paredes devem estar nuas, nossas vidas devem estar despojadas, deve haver a base de uma boa administração doméstica e de uma vida harmoniosa. Todavia, o gosto pelo belo cultiva-se mais ao ar livre, onde não há casa nem caseiro.

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