sábado, 5 de janeiro de 2008

À Sombra das Raparigas em Flor

Mas, sobretudo, ao falar dos meus gostos que não mais mudariam, do que estava destinado a tornar a minha vida feliz, insinuava em mim duas suspeitas terrivelmente dolorosas. A primeira era de que a minha vida tinha já começado (quando todos os dias me considerava como que no limiar da minha vida ainda intacta, e que só começaria de manhã), mais ainda, que o que se ia seguir não seria muito diferente do antecedente. A segunda suspeita, que a bem dizer não passava de outra forma da primeira, era de que não estava situado fora do Tempo, antes sujeito às suas leis, tal como aquelas personagens do romance que, por causa disso, me lançavam em tal tristeza quando lia as suas vidas, em Combray, ao fundo da minha guarita de verga. Teoricamente sabe-se que a Terra gira, mas de facto não damos por isso, o chão que pisamos parece que não se mexe e vivemos tranquilos. É o que se passa com o tempo na vida. E, para tornar a sua fuga sensível, os romancistas são obrigados, acelerando loucamente as oscilações do pêndulo, a fazer o leitor saltar dez, vinte, trinta anos, em dois minutos. Deixámos no alto de uma página um amante em plena esperança, e ao fundo da seguinte tornamos a encontrá-lo octogenário, fazendo penosamente no pátio de um hospício o seu passeio quotidiano, mal respondendo às palavras que lhe diziam, esquecido do passado. Ao dizer a meu respeito: «Já não é uma criança, os seus gostos não vão mudar, etc.», o meu pai acabava de repente de me revelar a mim mesmo dentro do Tempo, e causava-me o mesmo género de tristeza de como se eu fosse, não ainda o asilado senil, mas um daqueles heróis de quem o autor, num tom indiferente que é particularmente cruel, nos diz no fim de um livro: «Sai cada vez menos do campo. Acabou por se fixar por lá definitivamente, etc.»

Sem comentários: