Um dos empregados era um farmacêutico quase adolescente, extremamente
magro e de óculos grandes que à noite, quando a farmácia estava de
turno, lia sempre um livro. Uma noite, Amalfitano perguntou-lhe, para
dizer alguma coisa enquanto o jovem procurava nas prateleiras, de que
livros gostava ele e que livro era aquele que estava a ler naquele
momento. O farmacêutico respondeu-lhe, sem se virar, que gostava dos
livros tipo A Metamorfose, Bartleby, Um Coração Simples, Um Conto de
Natal. E depois disse-lhe que estava a ler Boneca de Luxo, de Capote.
Pondo de lado que Um Coração Simples e Um Conto de Natal eram, como o
nome deste último indicava, contos e não livros, mostrava-se revelador o
gosto deste jovem farmacêutico ilustrado, que talvez noutra vida tenha
sido Trakl, ou que talvez nesta ainda lhe estivesse reservado escrever
poemas tão desesperados como o seu distante colega austríaco, que
preferia claramente, sem discussão, a obra menor à obra maior. Escolhia A
Metamorfose, em vez de O Processo, escolhia Bartleby em vez de Moby
Dick, escolhia Um Coração Simples em vez de Bouvard e Pécuchet, e Um
Conto de Natal em vez de Um Conto de Duas Cidades ou de As Aventuras
Extraordinárias do Sr. Pickwick. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano.
Já nem os farmacêuticos ilustrados se atrevem com as grandes obras,
imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminho no desconhecido. Escolhem
os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou, o que é a mesma coisa, querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas nada
querem saber dos combates a sério, nos quais os grandes mestres lutam
contra aquilo, esse aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que
nos acobarda e verga, e há sangue, feridas mortais e fetidez.
terça-feira, 3 de setembro de 2013
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