terça-feira, 3 de setembro de 2013

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Um dos empregados era um farmacêutico quase adolescente, extremamente magro e de óculos grandes que à noite, quando a farmácia estava de turno, lia sempre um livro. Uma noite, Amalfitano perguntou-lhe, para dizer alguma coisa enquanto o jovem procurava nas prateleiras, de que livros gostava ele e que livro era aquele que estava a ler naquele momento. O farmacêutico respondeu-lhe, sem se virar, que gostava dos livros tipo A Metamorfose, Bartleby, Um Coração Simples, Um Conto de Natal. E depois disse-lhe que estava a ler Boneca de Luxo, de Capote. Pondo de lado que Um Coração Simples e Um Conto de Natal eram, como o nome deste último indicava, contos e não livros, mostrava-se revelador o gosto deste jovem farmacêutico ilustrado, que talvez noutra vida tenha sido Trakl, ou que talvez nesta ainda lhe estivesse reservado escrever poemas tão desesperados como o seu distante colega austríaco, que preferia claramente, sem discussão, a obra menor à obra maior. Escolhia A Metamorfose, em vez de O Processo, escolhia Bartleby em vez de Moby Dick, escolhia Um Coração Simples em vez de Bouvard e Pécuchet, e Um Conto de Natal em vez de Um Conto de Duas Cidades ou de As Aventuras Extraordinárias do Sr. Pickwick. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Já nem os farmacêuticos ilustrados se atrevem com as grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminho no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou, o que é a mesma coisa, querem ver os grandes mestres em sessões de treino de esgrima, mas nada querem saber dos combates a sério, nos quais os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que nos acobarda e verga, e há sangue, feridas mortais e fetidez.

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