quinta-feira, 28 de março de 2024

Anteaurora

Pai

Tenho medo de morrer depois da morte

Tenho medo de morrer antes da vida

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Livro de sonetos

Não comerei da alface a verde pétala

Nem da cenoura as hóstias desbotadas

Deixarei as pastagens às manadas

E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro; deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei, feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Poemas canhotos

 o António Ramos Rosa estava deitado na cama contra a parede 

e deu meia volta sobre si mesmo 

e ficou de cara voltada contra a parede 

e fechou os olhos 

e fechou a boca

e ficou todo fechado 

e então morreu todo 

fundo e completo de uma só vez 

e apenas ele no tempo e no espaço 

e só agora passado ano e meio eu compreendo 

como era preciso ser assim tão íntimo para sempre 

tão compacto 

mais que o mundo inteiro

 – e ele sou eu

domingo, 26 de novembro de 2023

Visão de Herberto Helder da morte de António Ramos Rosa

António ramos rosa cuja morte0

herberto viu sem a ela assistir 

estava, segundo o testemunho obtido 

através da visão vinda num frio 

relâmpago, deitado numa cama 

a dele, contra a parede 


Há que dar meia volta com a cara 

contra a parede para entrar na morte 

totalmente 

isso aprendeu herberto e compreendeu 

ao ver-se nessa morte em que não estava 

que se via num espelho

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Na morte de um contabilista

 As contas estão feitas e decerto fechadas

(não sei se são sinónimos os termos com que tento

descrever em que ponto

final foram deixadas)


falávamos há dias das actas que faltavam

e em falta ficaram


não as irá fazer e não sei se isso importa

só se fará a acta da entrada no fogo

ou na terra,

ar e água talvez não façam falta.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Golpe

Por medo da insónia adio o sono

nas noites em que com um golpe frio

a memória levanta a onda morta

do irrecuperável: o que adio?

Estou deitado num tempo muito extenso
entre a luz e o escuro, estou perdido
entre o imaginado e a verdade
de um mundo sem imagens: o que adio

não é o sono de que temo a falta
nem o sonho feroz nele contido
é a história do corpo percutindo
na fundura impiedosa do vazio

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

O forno e a face

Quando o dia 

da noite se separa sem sabermos 

qual deles nos prepara 


seja para o passado (mas não há

preparação, sequer reparação 

do que está selado) 


seja para cumprir o contrato da nossa 

tão incerta saída ( de que vida?) 

os astros vão 


esquecer-nos e deixarão por fim 

que a luz abandonando a pele há tanto ao cósmico 

desígnio subjugada, 


não seja mais a voz outrora já 

escutada 

dentro do alto forno que nos forjou a cara

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Capitalismo e pulsão de morte

 Aquilo a que hoje chamamos crescimento é, na realidade, uma proliferação carcinomatosa, desprovida de sentido. Actualmente assistimos a uma euforia de produção e de crescimento que faz lembrar um delírio de morte. Simula uma vitalidade que oculta a aproximação de uma catástrofe mortal. A produção assemelha-se cada vez mais a uma destruição.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Capitalismo e pulsão de morte

 Nas sociedades capitalistas, os mortos e os moribundos são cada vez menos visíveis. Mas não se pode simplesmente fazer desaparecer a morte. Se, por exemplo, a fábrica já não existe, o trabalho está por toda a parte. Se as instituições psiquiátricas desaparecem, é porque a loucura se tornou normalidade. Passa-se exactamente o mesmo com a morte. Se os mortos já não são visiveís, o rigor mortis cobre a vida. A cida petrifica-se, convertendo-se em sobrevivência. (...)  

A separação entre a vida e a morte, que constitui a economia capitalista, produz a vida morta-viva, a morte em vida. O capitalismo gera uma pulsão de morte paradoxal, porque priva a vida de vida. É mortal a sua busca de uma vida sem morte. Os zombies do desempenho, do fitness ou do botox são fenómenos da vida morta-viva. Os mortos-vivos não têm vitalidade. Só é verdadeiramente viva a vida que incorpora a morte. A histeria da saúde é a manifestação biopolítica do próprio capital.

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Ars moriendi, ars vivendi

 Nesta dinâmica da diluição, Bénédicte Mariolle diagnostica uma tripla convulsão: em primeiro lugar, a relação ambígua que o ser humano vive com a própria morte, considerada, por um lado, como tabu, por outro lado, cada vez mais presente de modo virtual em nossas casas, através de séries, filmes ou jogos de vídeo que a banalizam. Um segundo ponto estaria ligado à dissolução da memória colectiva, associada à fluidez das relações sociaise à voracidade da informação consumida, que desgastam uma dimensão de memória longa e colectiva associada, sobretudo, ao dinamismo simbólico da prática liturgica e comunitári dos funerais. Finalmente, a questão da inconsistência do corpo: a prática cada vez mais comum de eliminação do cadáver, seja por cremação e subsequente dispersão das cinzas, seja por outros tipos de enterro fora do contexto comunitário, afastando o corpo individual do corpo social, fragmentando este último.


em Revista Brotéria, Novembro 2022

sexta-feira, 9 de junho de 2023

A morte de Ivan Ilitch

Todos vêem que ele tem dificuldades e dizem-lhe "Podemos interromper, se está cansado. Descanse." Descansar? Não, não está cansado e acabam a partida. Estão sombrios e silenciosos. Ivan Ilitch sente que foi o responsável por aquele tom soturno, e não consegue dissipá-lo. Ceiam e separam-se, e Ivan Ilitch fica sozinho com a consciência de que a sua vida está envenenada para ele, envenena a vida dos outros e que esse veneno não diminui, mas penetra cada vez mais no seu ser.

Com essa consciência, e com a dor física e o horror, vai deitar-se na cama e muitas vezes não dorme com dores a maior parte da noite. E de manhã tem de se leveantar outra vez e veste-se, vai para o tribunal, fala, escreve, e se não vai, fica em casa com aquelas vinte e quatro horas do dia, cada uma das quais um tormento. E tem de viver assim à beira da morte sozinho, sem uma única pessoa que o compreenda e tenha pena dele.

domingo, 4 de junho de 2023

A morte de Ivan Ilitch

 Muito depressa, não mais que um ano depois do casamento, Ivan Ilitch compreendeu que a vida conjugal, embora acrescente algum conforto à vida, no fundo é um assunto muito complicado e difícil em relação ao qual, para cumprir o seu dever, isto é para levar uma vida honesta, aprovada pela sociedade, é necessária uma atitude determinada, tal como para as funções oficiais.

E Ivan Ilitch adoptou essa atitude em relação à vida de casado. Exigia da vida familiar apenas os confortos - o jantar, a esposa em casa, a cama - que ela lhe podia dar, e principalmente uma decência exterior, detrminada pela opinião pública. 

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Footnote do Howl

Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy! Holy!

The world is holy! The soul is holy! The skin is holy! The nose is holy! The tongue and cock and hand and asshole holy!
Everything is holy! everybody’s holy! everywhere is holy! everyday is in eternity! Everyman’s an angel!
The bum’s as holy as the seraphim! the madman is holy as you my soul are holy!
The typewriter is holy the poem is holy the voice is holy the hearers are holy the ecstasy is holy!
Holy Peter holy Allen holy Solomon holy Lucien holy Kerouac holy Huncke holy Burroughs holy Cassady holy the unknown buggered and suffering beggars holy the hideous human angels!
Holy my mother in the insane asylum! Holy the cocks of the grandfathers of Kansas!
Holy the groaning saxophone! Holy the bop apocalypse! Holy the jazzbands marijuana hipsters peace peyote pipes & drums!
Holy the solitudes of skyscrapers and pavements! Holy the cafeterias filled with the millions! Holy the mysterious rivers of tears under the streets!
Holy the lone juggernaut! Holy the vast lamb of the middleclass! Holy the crazy shepherds of rebellion! Who digs Los Angeles IS Los Angeles!
Holy New York Holy San Francisco Holy Peoria & Seattle Holy Paris Holy Tangiers Holy Moscow Holy Istanbul!
Holy time in eternity holy eternity in time holy the clocks in space holy the fourth dimension holy the fifth International holy the Angel in Moloch!
Holy the sea holy the desert holy the railroad holy the locomotive holy the visions holy the hallucinations holy the miracles holy the eyeball holy the abyss!
Holy forgiveness! mercy! charity! faith! Holy! Ours! bodies! suffering! magnanimity!
Holy the supernatural extra brilliant intelligent kindness of the soul!

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Howl II

 What sphinx of cement and aluminum bashed open their skulls and ate up their brains and imagination?

Moloch! Solitude! Filth! Ugliness! Ashcans and unobtainable dollars! Children screaming under the stairways! Boys sobbing in armies! Old men weeping in the parks!
Moloch! Moloch! Nightmare of Moloch! Moloch the loveless! Mental Moloch! Moloch the heavy judger of men!
Moloch the incomprehensible prison! Moloch the crossbone soulless jailhouse and Congress of sorrows! Moloch whose buildings are judgment! Moloch the vast stone of war! Moloch the stunned governments!
Moloch whose mind is pure machinery! Moloch whose blood is running money! Moloch whose fingers are ten armies! Moloch whose breast is a cannibal dynamo! Moloch whose ear is a smoking tomb!
Moloch whose eyes are a thousand blind windows! Moloch whose skyscrapers stand in the long streets like endless Jehovahs! Moloch whose factories dream and croak in the fog! Moloch whose smoke-stacks and antennae crown the cities!
Moloch whose love is endless oil and stone! Moloch whose soul is electricity and banks! Moloch whose poverty is the specter of genius! Moloch whose fate is a cloud of sexless hydrogen! Moloch whose name is the Mind!
Moloch in whom I sit lonely! Moloch in whom I dream Angels! Crazy in Moloch! Cocksucker in Moloch! Lacklove and manless in Moloch!
Moloch who entered my soul early! Moloch in whom I am a consciousness without a body! Moloch who frightened me out of my natural ecstasy! Moloch whom I abandon! Wake up in Moloch! Light streaming out of the sky!
Moloch! Moloch! Robot apartments! invisible suburbs! skeleton treasuries! blind capitals! demonic industries! spectral nations! invincible madhouses! granite cocks! monstrous bombs!
They broke their backs lifting Moloch to Heaven! Pavements, trees, radios, tons! lifting the city to Heaven which exists and is everywhere about us!
Visions! omens! hallucinations! miracles! ecstasies! gone down the American river!
Dreams! adorations! illuminations! religions! the whole boatload of sensitive bullshit!
Breakthroughs! over the river! flips and crucifixions! gone down the flood! Highs! Epiphanies! Despairs! Ten years’ animal screams and suicides! Minds! New loves! Mad generation! down on the rocks of Time!
Real holy laughter in the river! They saw it all! the wild eyes! the holy yells! They bade farewell! They jumped off the roof! to solitude! waving! carrying flowers! Down to the river! into the street!

terça-feira, 9 de maio de 2023

A morte de Ivan Ilitch

 Gozavam todos de boa saúde. Não se podia chamar doença àquilo de que Ivan Ilitch por vezes falava: tinha um gosto estranho na boca e um certo desconforto no lado esquerdo do ventre.

Mas aconteceu que esse desconforto começou a aumentar e a transformar-se não ainda em dor, mas numa sensação de peso constante, acompanhada de mau humor. Esse mau humor, que se acentuava cada vez mais, começou a arruinar a vida agradavél que se estabelecera na família Golovin.

domingo, 26 de março de 2023

Livro do Desassossego

DIÁRIO AO ACASO

Todos os dias a Matéria me maltrata. A minha sensibilidade é uma chama ao vento.

Passo por uma rua e estou vendo na face dos transeuntes, não a expressão que eles realmente têm, mas a expressão que teriam para comigo se soubessem a minha vida, e como eu sou, se eu trouxesse transparente nos meus gestos e no meu rosto a ridícula e tímida anormalidade da minha alma. Em olhos que não me olham, suspeito troças que acho naturais, dirigidas contra a excepção deselegante que sou entre um mundo de gente que age e goza; e no fundo suposto de fisionomias que passam gargalha da acanhada gesticulação da minha vida uma consciência dela que sobreponho e interponho. Debalde, depois de pensar isto, procuro convencer-me de que de mim, e só de mim, a ideia da troça e do opróbio leve parte e esguicha. Não posso já chamar a mim a imagem do ver-me ridículo, uma vez objectivado nos outros. Sinto-me, de repente, abafar e hesitar numa estufa de mofas e inimizades. Todos me apontam a dedo do fundo das suas almas. Lapidam-me de alegres e desdenhosas troças todos que passam por mim. Caminho entre fantasmas inimigos que a minha imaginação doente imaginou e localizou em pessoas reais. Tudo me esbofeteia e me escarnece. E às vezes, em pleno meio da rua — inobservado, afinal — paro, hesito, procuro como que uma súbita nova dimensão, uma porta para o interior do espaço, para o outro lado do espaço, onde sem demora fuja da minha consciência dos outros, da minha intuição demasiado objectivada da realidade das vivas almas alheias.

Será que o meu hábito de me colocar na alma dos outros, me leva a ver-me como os outros me vêem, ou me veriam se em mim reparassem? Sim. E uma vez eu perceba como eles sentiriam o meu respeito se me conhecessem, é como se eles o sentissem na verdade, o estivessem sentindo, e sentindo-o, exprimindo-o naquele momento. Conviver com os outros é uma tortura para mim. E eu tenho os outros em mim. Mesmo longe deles sou forçado ao seu convívio. Sozinho, multidões me cercam. Não tenho para onde fugir a não ser que fuja de mim.

Ó grandes montes ao crepúsculo, ruas quase estreitas ao luar, ter a vossa inconsciência das (...) a vossa espiritualidade de Matéria apenas, sem critério, sem sensibilidade, sem onde pôr sentimentos, nem pensamentos, nem desassossegos de espírito! Árvores tão apenas árvores, com uma verdura tão agradável aos olhos, tão exterior aos meus cuidados e às minhas penas, tão consoladora para as minhas angústias porque não tendes olhos com que as fitardes nem alma que, fitável por esses olhos, possa não as compreender e troçá-las! Pedras do caminho, troncos decepados, mera terra anónima do chão de toda a parte, minha irmã porque a vossa insensibilidade à minha alma é um carinho e um repouso... [...] ao sol ou sob a lua da Terra minha mãe, tão enternecidamente minha mãe, porque não podes criticar-me sequer, como a minha própria mãe humana pode, porque não tens alma com que, sem pensar nisso me analises, nem rápidos olhares que traiam pensamentos de mim que nem a ti própria confesses. Mar enorme, meu ruidoso companheiro da infância, que me repousas e me embalas, porque a tua voz não é humana e não pode um dia citar em voz baixa a ouvidos humanos as minhas fraquezas, e as minhas imperfeições. Céu vasto, céu azul, céu próximo do mistério dos anjos [...] (...), tu não me olhas com olhos verdes, tu se pões o Sol a teu peito não o fazes para me atrair, nem se te (...) de estrelas o antefazes para me desdenhar... Paz imensa da Natureza, materna pela sua ignorância de mim; sossego afastado [...] e dos sistemas, tão irmão no teu nada poder saber a meu respeito... Eu queria orar à vossa imensidade e à vossa calma, como mostra de gratidão que nos traz o poder amar sem suspeitas nem dúvidas; queria dar ouvidos ao vosso não poder-ouvir [...] dar olhos à vossa sublime [...] e ser objecto das vossas atenções por esses supostos olhos e ouvidos, consolado de ser presente ao vosso Nada, atento, como de uma morte definitiva, sem esperança de outra vida, para além dum Deus e da possibilidade de seres [?] voluptuosamente velho e da cor espiritual de todas as matérias.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Livro do Desassossego

 O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o acto de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheado e desinteressado, meio atento e sem entusiasmo nem fulgor.

domingo, 19 de março de 2023

Livro do Desassossego

 A mais vil de todas as necessidades — a da confidência, a da confissão. E a necessidade da alma de ser exterior.

Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos seus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que o segredo que dizes, nunca o tinhas dito. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir(-se) é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Livro do Desassossego

 Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendência desse dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê naquela sobrevivência que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adiante, há um que(...)

 

Um lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver, inutilmente.

 

Vou num carro eléctrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram - pois que o vejo vestido e não estofo - e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos - a fábrica onde se fez o tecido: a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto do pescoço; e vejo as secções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde-escuro sobre um verde-claro de vestido.

 

Toda a vida social jaz a meus olhos.

 

Para além disto pressinto os amores, as secrecias, a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no eléctrico use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde-escura fazenda verde menos escura.

 

Entonteço. Os bancos do eléctrico, de um entretecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo.

 

Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira.

terça-feira, 7 de março de 2023

Livro do Desassossego

Omar tinha uma personalidade; eu, feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Quem, como Omar, é quem é, vive num só mundo, que é o externo; quem, como eu, não é quem é, vive não só no mundo externo, mas num sucessivo e diverso mundo interno. sua filosofia, ainda que queira ser a mesma que a de Omar, forçosamente o não poderá ser. Assim, sem que deveras o queira, tenho em mim, como se fossem almas, as filosofias que critique; Omar podia rejeitar a todas, pois lhe eram externas, não as posso eu rejeitar, porque são eu.

Livro do Desassossego

O ter tocado nos pés de Cristo não é desculpa para defeitos de pontuação.

Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser  que o seu fígado sofre com isso respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.

Livro do Desassossego

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida. 

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

 

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

 

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

 

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

sábado, 8 de outubro de 2022

As confissões de Santo Agostinho

Acontece, porém, que não estamos hoje em boa posição para apreciar tal novidade agostiniana. Somos herdeiros de uma modernidade que parece ter percorrido todos os caminhos da subjectividade, desde os mais transpa- rentes – de Descartes a Husserl – até os mais escabrosos e obscuros: Mar- quês de Sade, S. Freud, J.-P. Sartre et alii. Com efeito, podemos até ficar incomodados e sentir-nos agredidos ou manipulados com o género confes- sional, fartos que estamos da atroz e despudorada exposição pública da inti- midade em programas televisivos (de teor familiar, amoroso, religioso, etc.), onde proliferam os programas-confessionário, bem assim os temas do jorna- lismo tablóide e persecutório que devassa a vida privada. Parece que o espaço público da pólis, mercê do apelo mediático, se transformou em vomitório público. Já não há palavra, mas ruídos e dejectos no meio dos quais cada um clama pelo seu minuto de protagonismo, exibindo (literalmente) o umbigo narcísico e o seu fetiche, querendo erigir a pequenina história mais ou me- nos bizarra, em grande narrativa e modelo universalizável, mesmo à custa de expor a vida privada e esventrar a dignidade pessoal. Afirma G. Steiner, cri- ticando a patologia do actual desejo de exposição mediática:

(...) Detesto esta explosão de indiscrição total que caracteriza a nossa época, onde não há mais vida privada. Esta doença da confissão não me interessa. É uma coisa que destrói a possibilidade de haver política em democracia, porque ninguém pode sobreviver a um exame minucioso de cada detalhe da sua vida privada: sabemo-lo bem; tal destrói uma certa dignidade interior..

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Sete cartas a um jovem filósofo

 Meu caro Amigo: do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros, se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu, do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar muito a mim não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem.

domingo, 17 de julho de 2022

Sete cartas a um jovem filósofo

 Mas deixe-me dizer-lhe o que penso: se você sacrificar a sua obra, é porque a não tinha: havia apenas o desejo da obra, a imaginação da obra, e nada mais.