segunda-feira, 15 de abril de 2024

Portugal Sacro-profano (Mercados dos Santos, em Nisa)

O tempo é outro tempo nas terras pequenas 

e quem de si mesmo afinal foge encontra aqui o coração em festa 

As árvores são novas e no adro em rodas contra a cal e contra o frio há gente 

o sol preenche tudo e é quase tão redondo como Deus 

Cada coisa tem nome e reconheço o aroma das estevas 

na missa o claro coro das mulheres leva os campos à igreja 

e há crianças bibes saco escola sino guizos gado 

o frio fecha, o sol semeia, a luz alastra e o silêncio é fundamental 

— cartaz quase municipal que me recruta e traz 

do fundo de umas páginas de pó ao cúmulo das folhas amarelas 

reais e rituais, folhas finas das mãos de Columbano 

como tudo o que gira envolto no rodar do ano 

E a terra a pedra o ar opõem sempre ao céu a mesma superfície 

sobre os corpos extensos sob a erva, imersos no cansaço 

E eu dia após dia dado ao esforço de alongar 

a morte prometida a toda a minha cara ou dissipar 

a queda num lugar desde o mais alto de mim próprio 

Ah! não ter eu uma só solução para tudo, tantos gestos transbordantes 

em vez de dividir os dedos pelas coisas múltiplas diversas 

Uma só cara uma só rua em vez de tantos traços e travessas 

uma mulher, alguém capaz de partilhar 

o peso que nos ombros cada dia nos puser 

Mas um homem aqui renasce e repudia a morte 

que lhe amarrava os braços ao quadrante do relógio

Amigos para quê? E longe de famílias e tensões, 

alheio a elementos de curriculum, esquecido 

até de prazos horas carreira promissora ou simples biografia 

o homem vai buscar às árvores de pé pedidas pelo sol 

a única possível genealogia 

Pátria paraíso pétala — que nome 

existe para isto que nem mesmo é alegria 

nem nascer outra vez apenas, nem matar aquela fome 

que o mais certinho dia sem remédio adia?! 

Aqui há coisas homens pedras oliveiras animais 

reunidos na vida, recortados nítidos diversos 

E apesar da indispensável confusão dos versos 

aqui não é possível nunca mais 

trocar coisa por coisa. Aqui o dia cai 

sobre a noite que sobe. Uma voz canta, 

alguém além mais longe chora 

O adro a árvore a casa onde se está, onde se entra e mora 

Aqui o homem é… ou era mesmo agora

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