sábado, 8 de outubro de 2022

As confissões de Santo Agostinho

Acontece, porém, que não estamos hoje em boa posição para apreciar tal novidade agostiniana. Somos herdeiros de uma modernidade que parece ter percorrido todos os caminhos da subjectividade, desde os mais transpa- rentes – de Descartes a Husserl – até os mais escabrosos e obscuros: Mar- quês de Sade, S. Freud, J.-P. Sartre et alii. Com efeito, podemos até ficar incomodados e sentir-nos agredidos ou manipulados com o género confes- sional, fartos que estamos da atroz e despudorada exposição pública da inti- midade em programas televisivos (de teor familiar, amoroso, religioso, etc.), onde proliferam os programas-confessionário, bem assim os temas do jorna- lismo tablóide e persecutório que devassa a vida privada. Parece que o espaço público da pólis, mercê do apelo mediático, se transformou em vomitório público. Já não há palavra, mas ruídos e dejectos no meio dos quais cada um clama pelo seu minuto de protagonismo, exibindo (literalmente) o umbigo narcísico e o seu fetiche, querendo erigir a pequenina história mais ou me- nos bizarra, em grande narrativa e modelo universalizável, mesmo à custa de expor a vida privada e esventrar a dignidade pessoal. Afirma G. Steiner, cri- ticando a patologia do actual desejo de exposição mediática:

(...) Detesto esta explosão de indiscrição total que caracteriza a nossa época, onde não há mais vida privada. Esta doença da confissão não me interessa. É uma coisa que destrói a possibilidade de haver política em democracia, porque ninguém pode sobreviver a um exame minucioso de cada detalhe da sua vida privada: sabemo-lo bem; tal destrói uma certa dignidade interior..

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