terça-feira, 9 de março de 2021

Madame Bovary

 Charles entrou na sala. Boulanger apresentou-Lhe o homem, que queria ser sangrado, porque sentia formigueiros pelo corpo todo.

 - A sangria vai-me purgar - respondia ele a todos os argumentos. 

Bovary mandou então trazer uma ligadura e uma bacia e pediu a Justin que segurasse nela. Depois voltou-se para o camponês, que já estava lívido: 

- Não tenha medo, homem! 

- Não, não, respondeu o outro, faça lá isso! 

E, com ar fanfarrão, estendeu o grosso braço. Com a picada da lanceta, o sangue esguichou e foi sujar o espelho. 

- Aproxima a bacia! - exclamou Charles. 

- Olha! - dizia o campónio -, parece mesmo uma bica a correr! Tenho o sangue bastante vermelho! Deve ser bom sinal, não? 

- Às vezes - comentou o oficial de saúde - não se sente nada no princípio, mas depois a síncope declara-se, especialmente nos indivíduos bem constituídos, como este. 

O camponês, ao ouvir estas palavras, largou o estojo que fazia girar entre os dedos. Com um safanão dos ombros fez estalar as costas da cadeira. Deixou cair o chapéu. 

- Já calculava isto - disse Bovary, aplicando o dedo sobre a veia. A bacia começava a tremer nas mãos de Justin; os joelhos vacilaram-lhe e empalideceu. -

 A minha mulher! Emma! - chamou Charles. 

Ela desceu a escada num pulo. 

- Vinagre! - gritou ele.- Oh, meu Deus, dois de uma vez só! E, na sua atrapalhação, tinha dificuldade em aplicar a compressa. - Não é nada - dizia calmamente o senhor Boulanger, enquanto amparava Justin com os braços. 

E sentou-o em cima da mesa, apoiando-lhe as costas contra a parede. A senhora Bovary começou logo a tirar-lhe a gravata. Havia um nó nos cordões da camisa; levou uns minutos a remexer com os seus dedos leves no pescoço do rapaz; seguidamente pôs vinagre no seu lenço de cambraia e molhou-lhe as fontes com pequenos toques, soprando-Lhes em cima delicadamente. O carroceiro voltou a si; mas a síncope de Justin ainda durava e as pupilas desapareciam-lhe na esclerótica descorada como flores azuis dentro de leite.

 - Tem de se Lhe esconder isso - disse Charles. A senhora Bovary pegou na bacia. Para a meter debaixo da mesa, com o movimento que fez ao inclinar-se, o vestido (era um vestido de Verão com quatro folhos, amarelo, de cintura descaída e largo de saia) abriu-se em volta dela, sobre o ladrilho da sala; e, à medida que Emma, abaixada, oscilava um pouco com o afastamento dos braços, o tecido tufado enrugava-se de um ou de outro lado, conforme as inflexões do corpo. Seguidamente foi buscar uma garrafa de água e estava a derreter pedaços de açúcar quando entrou o farmacêutico. A criada fora chamá-lo naquela balbúrdia; ele, encontrando o seu aluno com os olhos abertos, respirou fundo. Depois, girando-lhe em torno, olhava-o de alto a baixo. 

- Parvo! - dizia ele.- É mesmo parvinho! Parvo com todas as letras! Olhem que grande coisa, afinal, uma flebotomia! É isto um valentão que não tem medo de nada! Parece um esquilo, o maroto que aí se vê, capaz de trepar a alturas vertiginosas para sacudir as nozes. Vá lá, fala, anda, gaba-te! Eis uma excelente inclinação para exerceres mais tarde a farmácia; é que podes ser chamado, em circunstâncias graves, diante dos tribunais, para esclarecer a consciência dos magistrados; e terás mesmo de manter o sangue frio, raciocinar, mostrar que és um homem, ou então passar por um imbecil! 

Justin não respondia.

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