Pode sempre abstrair-se nomeadamente da parte sistemática que todo o grande artista voluntário introduz fatalmente nas suas obras; neste caso, resta procurar e verificar que qualidade própria, pessoal, o distingue dos outros. Um artista, um homem verdadeiro digno desse grande nome, deve possuir algo de essencialmente sui generis, por virtude do qual ele é ele, e não outro. Deste ponto de vista, os artistas podem comparar-se a variados sabores, e o reportório das metáforas humanas talvez não seja suficientemente vasto para fornecer a definição aproximada de todos os artistas conhecidos e de todos os artistas possíveis. Penso que já notámos dois homens em Richard Wagner, o homem de ordem e o homem apaixonado. É do homem apaixonado, do homem de sentimentos que se trata aqui. No mínimo dos seus trechos musicais ele inscreve tão ardentemente a sua personalidade que aquela busca da qualidade principal não será difícil de fazer. Desde o princípio uma consideração me havia impressionado vivamente: é que na parte voluptuosa e orgíaca da abertura Tannhäuser o artista puser tanta força, desenvolvera tanta energia como na descrição do misticismo que caracteriza a abertura de Lohengrin. Numa e noutra, a mesma ambição, a mesma escalada titânica a também os mesmos refinamentos e a mesma subtileza. O que portanto me parece caracterizar, antes de mais nada, de um modo inexaurível, a música deste mestre é a intensidade nervosa, a violência na paixão e na vontade. Essa música exprime com a voz mais suave ou mais estridente tudo o que há de mais escondido no coração do homem. Uma ambição ideal preside, é certo, a todas as suas composições; mas se, pela escolha dos seus assuntos, e pelo seu método dramático, Wagner se aproxima da antiguidade, pela energia apaixonada da sua expressão, ele é actualmente o representante mais verdadeiro do temperamento moderno. E toda a ciência, todos os esforços, todas as combinações deste rico espírito, são apenas, a bem dizer, os humílimos e zelosíssimos servidores desta irresistível paixão. Daí resulta, seja qual for o tema tratado por ele, uma superlativa solenidade de tom. Graças a esta paixão ele acrescenta a todas as coisas um não sei quê de sobre-humano; graças a essa paixão ele compreende tudo e faz compreender tudo. Tudo o que as palavras vontade, desejo, concentração, intensidade nervosa, explosão, implicam sente-se e faz-se adivinhar nas suas obras. Não penso iludir-me nem enganar ninguém ao afirmar que vejo aqui as principais características do fenómeno a que chamamos génio; ou, pelo menos, que na análise de tudo aquilo a que até aqui legitimamente chamamos génio encontramos as ditas características. Em matéria de arte, confesso que não detesto o exagero; a moderação nunca me pareceu ser sinal de um temperamento artístico vigoroso. Gosto desses excessos de saúde, dessas desmesuras de vontade que se inscrevem nas obras como o betume e, chamas no solo de um vulcão e que, na vida comum, marcam com frequência a fase, cheia de delícias, que sucede a uma grande crise moral ou física. Quanto à reforma que o mestre pretende introduzir na aplicação da música ao drama, que irá ser feito dela? Aí, é impossível profetizar seja o que for com exactidão. De um modo vago e geral, podemos dizer, como o Salmista, que mais tarde ou mais cedo os que foram rebaixados serão elevados e os que foram elevados serão humilhados, mas nada mais que aquilo que é geralmente aplicável ao desenrolar conhecido de todos os assuntos humanos. Vimos muitas coisas outrora declaradas absurdas e que mais tarde se tornaram modelos adoptados pelas multidões. Todo o público actual se recorda da enérgica resistência com que depararam de início os dramas de Victor Hugo e as pinturas de Eugéne Delacroix. Por outro lado, já fizemos notar que a querela que agora divide o público era uma querela esquecida e subitamente reavivada, e que o próprio Wagner encontrara no passado os primeiros elementos da base onde assentar o seu ideal. O que é mais que certo é que a sua doutrina é de molde a criar uma aliança entre todas as pessoas inteligentes há muito fatigadas dos erros da «Ópera», e não é de admirar que os homens de letra, em especial, se tenham mostrado simpáticos relativamente a um músico que se gloria de ser poeta e dramaturgo. Do mesmo modo que os escritores do século XVIII aclamaram as obras de Gluck - e não posso deixar de ver que as pessoas que manifestam maior repulsa pelas obras de Wagner mostram igualmente uma decidida antipatia pelo seu precursor.
Por fim, o êxito ou inêxito de Tannhäuser nada pode provar em absoluto, nem sequer determinar uma quantidade qualquer de hipóteses favoráveis ou desfavoráveis no futuro. Supondo que Tannhäuser fosse uma obra detestável, teria podido ser posta nas nuvens. Supondo-a perfeita, poderia causar revolta. Na prática, a questão da reforma da ópera não está esvaziada e a batalha vai continuar; depois de apaziguada, irá recomeçar. Ouvi dizer recentemente que, se Wagner obtivesse com o seu drama um brilhante êxito, se trataria de um acidente puramente individual, e que o seu método não teria qualquer influência ulterior sobre os destinos e as transformações do drama lírico. Julgo-me autorizado, pelo estudo do passado, isto é, do eterno, a preconceber em absoluto a ideia contrária, quero dizer, que um fracasso completo de modo algum destrói a possibilidade de tentativas novas no mesmo sentido, e que num futuro muito próximo bem poderíamos ver, não apenas autores novos, mas até homens antigamente acreditados beneficiarem, em alguma medida, das ideia avançadas por Wagner, e passarem com felicidade através da brecha por ele aberta. Em que história lemos nós alguma vez que as grandes causas se perdiam numa só partida?
Sem comentários:
Enviar um comentário