quinta-feira, 27 de maio de 2010

O Crime do Padre Amaro

Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a ler os Cânticos a Jesus, tradução do francês publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrazinha beata, escrita com um lirismo equívoco, quase torpe - que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamando com as sofreguidões balbuciantes duma concupiscência alucinada: "Oh! Vem! Esmaga-me! Possui-me!". E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos donde se exala um bafo de cio místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores de parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloquências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se às confessadas; e a cantárida canónica!

Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, túmidos de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.

Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.

Começava então a recomendar-lhe a leitura dos Cânticos a Jesus.
- Verá, é muito bonito, de muita devoção! - disse ele, deixando-lhe o livrinho uma note no cesto de costura.

Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até ao meio da face. Queixou-se de insónia, de palpitações.
- E então, gostou dos Cânticos?
- Muito. Orações lindas! - respondeu.

Durante todo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste - e sem razão, às vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.

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