sábado, 28 de novembro de 2009

O Sono

Escrevo memórias no soalheiro entardecer lisboeta. Relembro a vida fugidia e aguardo pelo velado futuro. O chão marmóreo sob os meus pés gela com estes, esfria-me totalmente e torna-me sorumbático como as coisas. Se escrevo algo metálico e reluzente a minha própria pele se vitrifica e ameaça crepitar. Se ostento o punho que comanda a escrita ornamento as palavras que ficam como pedras com salitre. Se atravesso a distância real que se afasta do meu peito abandono a impressão fugaz da visão. Se assalto a vida imediata destruo a barreira entre desejo e objecto. Se dou um passo mais que o meu corpo desprezo o coração que me quer tanto. O dia é retalhado e o que escrevo é recortado da vida que decorre um pouco acima. Mas atemoriza-me transmitir uma distorção que não é cognoscível. Escapar-me o hiato abismal que é fronteira de tudo o que se esconde arrepia-me e soterra-me num fogo rubro e destruidor. Esta chama que faz em mim o desespero puro consome o meu corpo até à medula, e eu todo reajo com espasmos que não se vêm. Assim que tudo é cinza o incêndio extingue-se e o corpo incha e impregna-se de água. Como um circuito de expurgação.

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