sábado, 6 de dezembro de 2008

Dom Quixote de la Mancha - II

A poesia, senhor fidalgo, em meu parecer é como uma donzela terna e de pouca idade e em todo o extremo formosa, a qual têm cuidado de enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e ela há-de servir de todas, e todas se hão-de autorizar com ela; mas esta tal donzela não quer ser manuseada, nem trazida pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos rincões dos palácios. É feita de uma alquimia de tal virtude, que quem a sabe tratar a volverá ouro puríssimo de inestimável preço; há-de a ter o que a tiver em seu lugar, não a deixando correr em torpes sátiras nem em desalmados sonetos; não há-de ser vendível em maneira alguma, se não for em poemas heróicos, em lamentosas tragédias ou em comédias alegres e artificiosas; não há-de tratar com os truões, nem com o ignorante vulgo, incapaz de conhecer e estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor, que chamo aqui vulgo somente à gente plebeia e humilde, que todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve entrar em número de vulgo. E, assim, o que com os requisitos que disse tratar e tiver a poesia, será famoso e estimado seu nome em todas as nações políticas do mundo. Já pelo que dizeis, senhor, que vosso filho não estima muito a poesia de romance, dou-me a entender que não anda ele mui acertado nisso, e a razão é esta: o grande Homero nunca escreveu em latim, porque era grego, nem Virgílio escreveu em grego, porque era latino; em suma, todos os poetas antigos escreveram na língua que mamaram no leite, e não foram buscar as estrangeiras para declarar a alteza dos seus conceitos; e sendo isto assim, razão seria se estendesse esse costume por todas as nações, e que não se desestimasse o poeta alemão porque escreve em sua língua, nem o castelhano, nem tão-pouco o biscainho que escreve na sua. Mas vosso filho, ao que eu, senhor, imagino, não deve estar mal com a poesia de romance, senão com os poetas que são meros romancistas, sem saberem outras línguas nem outras ciências que adornem e despertem e ajudem seu natural impulso, e ainda nisto pode haver erro, porque, segundo é opinião verdadeira, o poeta nasce: quer-se com isto dizer que do ventre de sua mãe o poeta natural sai poeta, e com aquela inclinação que o céu lhe deu, sem mais estudo nem artifício, compõe coisas, fazendo verdadeiro aquele que disse: Est Deus in nobis, etc. Também digo que o natural poeta que se ajudar da arte será muito melhor e se avantajará sobre o poeta que somente por saber a arte o quiser ser: a razão é que a arte não se avantaja sobre a natureza, senão que a aperfeiçoa; assim, mescladas a natureza com a arte, e a arte com a natureza, darão um perfeitíssimo poeta.

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