Séculos, eis pois o meu século, solitário e disforme, o réu. O meu cliente dilacera-se por suas próprias mãos: o que tomais por linfa branca é sangue: não glóbulos vermelhos - o réu está a morrer de fome. Mas eu vos direi o segredo desta perfuração múltipla: o século teria sido bom, se o homem não tivesse sido acossado pelo seu inimigo cruel, imemorial, pela espécie carnívora que tinha jurado a sua perda, pela besta sem pêlo e maligna - pelo homem. Um e um são um, eis o nosso mistério. A besta escondia-se, nós surpreendíamos-lhe o olhar, subitamente, nos olhos íntimos dos nossos próximos; então feríamos: legítima defesa preventiva. Eu próprio surpreendi a besta, feri, caiu um homem. Nos seus olhos moribundos vi a besta, sempre viva, vi-a eu. Um e um são um: que mal-entendido! Donde vem - de quem, de quê? - este gosto rançoso e enjoativo na minha boca? Do homem? Da besta? De mim mesmo? É o gosto do século. Séculos felizes, vós que ignorais os nossos ódios, como havíeis de compreender o poder atroz dos nossos amores mortais? O amor, o ódio, um e um... Absolvei-nos! O meu cliente foi o primeiro a conhecer a vergonha: sabe que está nu. Crianças lindas que saís de nós, as nossas dores vos terão feito. Este século é uma mulher: está a dar à luz. Condenareis a vossa mãe? Hem? Respondei, vamos! (Pausa.) O século trinta não responde. Talvez não haja mais séculos após o nosso. Talvez alguma bomba tenha assoprado as luzes. Tudo estará morto: os olhos, os juízes, o tempo. Noite. Ó Tribunal da noite, tu que foste, que serás, que és, eu fui! Eu fui! Eu, Frantz von Gerlach, aqui, neste quarto, pus o século às minhas costas e disse: «Eu responderei por ele. Hoje e sempre.» Hem? O quê?
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